A década
de 1960 começava e,nas "Paradas de Sucesso", tão comuns naquela
época, estourava o nome de Elizeth Cardoso,com "A Canção de Amor", de
Elano de Paula e Chocolate. Surgiu o LP assim denominado, projetando a cantora
que já ostentava alguma notoriedade radiofônica. Algumas vezes, nalguns filmes
da Cinelândia, ela atuava como se pôde ver em "Pista de Grama", numa
das suas imortalizadas performances defendendo algo do "poetinha
maior" Vinícius de Moraes.
Já
se sabia dela,-quase no anonimato - ao lado de Grande Otelo, fazendo a
"Boneca de Piche" de Ari Barroso, encantando não só pela voz como
pela personificação do pequeno, mas cativante papel. Ouvindo-a pelo rádio,
não tive a menor dúvida de estar diante da mais empolgante intérprete da canção
popular brasileira. Procurei identificá-la e dizia que , um dia, haveria de
beijar-lhe a face, tal a minha admiração!
Ocorreu,
então, que uma sobrinha da minha saudosa cunhada Lucy, sabendo da minha
pretensão, teria como apresentar-me à Elizeth, o que não acreditei, achando que
talvez fosse uma brincadeira... Por duas semanas consecutivas, deixei de
atender ao convite, até que, um dia, fui com ela à casa de Marilu, artista da
Rádio Inconfidência que, inclusive, já conhecia.
Sem a projeção de quem fazia carreira em São Paulo ou no Rio, ainda assim,
Marilu dispunha de uma espécie de fã-clube que a "adorava", com muita
razão. Além de dominar o gênero popular, alguma vez, sob os estímulos do
emérito maestro Ângelo de Freitas encarnou "Cio-Cio-san" da ópera
"Madame Butterfly" de Puccini, numa montagem apreciável que
ocorreu no auditório do Colégio Izabela Hendrix, onde também celebridades
como o violonista Segóvia se apresentaram. Tempo em que esta cidade era mesmo
vergel, detentora de certa hegemonia, notadamente lírica, do que falarei
oportunamente.
Conduzidos pelo marido de Marilu, o estimadíssimo Sinésio, dono de uma distribuidora
de café na rua Santa Catarina, fomos num fusca que, numa velocidade de Fórmula
1, seguiu pela rua Pe. Eustáquio, até o Carlos Prates e, lá, chegamos.
Tudo
aquilo ainda me parecia uma brincadeira, Um trote de bom gosto...Mas, qual a
surpresa!
Ao entrar na casinha tão simples e acolhedora, logo pude visualizar num
sofazinho, assentada despretensiosamente, ELIZETH CARDOSO. Ela logo disse: "...é esse o moço que tem dado bolo?Que
já deveria ter vindo há mais de duas semanas?"
Timidamente,
muito sem graça, desapontado, com um sorriso amarelo e as mãos geladas,
cheguei-me diante dela e não tive coragem de cumprir a minha promessa de que
lhe daria um beijo no rosto. Ocorreu, justamente o contrário. Elizeth
abraçou-me,com um fraternal beijo no rosto. Quase caí duro!!! Algo que marcou a
minha vida para sempre.
Ao
lado dela, Lourdes, sua companheira de luta que me foi apresentada como sua
irmã.
No mesmo sofá, uma senhora de mais idade, muito simples, sorridente e
receptiva, olhava para mim com ternura. Era a dona Moreninha, mãe de Elizeth,
chamando-me de "filho". Dotada de incrível sensibilidade, curiosa
poeta primitiva e repentista. Relutava em acreditar que a televisão
fosse "verdade". Para ela, cantor mesmo, era Cauby Peixoto.
Oriunda da Bahia, criou sua família com os rigores da decência em todos os seus
aspectos. Não aprovava o fato de uma moça distinta ser cantora de rádio ou
atriz de palco. Mas, Elizeth conviveu com tamanha dificuldade, superando tudo,
graças ao seu pai que tocava algum instrumento numa banda de um subúrbio
carioca, levando-a, ainda criança, para atuar ao seu lado, no coreto local. E,
depois, levava, coro da mãe muito enérgica, conforme dizia
carinhosamente.
Às
quartas-feiras, salvo engano, a extinta TV Itacolomi apresentava, ao vivo,
consagrados nomes da nossa música. Para lá, como convidado, fui assistir à
apresentação daquela que acabou sendo uma das maiores referências da minha
juventude e que tanto me enaltecia, por conhecê-la pessoalmente.
O
estúdio ficava no vigésimo andar do edifício Acaiaca e qual foi a minha
surpresa, ao ver descer daquele veloz e assustador elevador, uma mulher de
marcante presença. Muitíssimo bem vestida e maquiada como uma
"estrela" de Hollywood. Nenhuma semelhança com a mesma pessoa que
estava naquele sofazinho, tão simplesmente. Era ela, nas vestes de uma
autêntica "diva" da canção deste país. E foi um dos mais
significativos momentos de tudo o que vi em toda minha visa. Ela arrebatava, a
cada página que empreendia.
Os
anos se sucederam e, para relatar tudo, só mesmo através de um livro de
mil páginas. Desta amizade de que tanto me orgulho, falarei
objetivamente, sobre algumas passagens que podem ser apreciáveis...
TEMPOS VIVIDOS...
Recrudesceu-se
um vínculo fraternal. Como que, passei a ser integrante da sua família,
conhecendo seu filho Paulo Valdez, hoje conceituado médico e dentista, nos braços
de quem Elizeth deu seu último suspiro, após delongada enfermidade contra qual
ela lutou bravamente, mas perdeu a batalha.
A única, porque vencedora, no exterior, empunhou a bandeira de honra que
acabaria projetando o Brasil em todo o mundo. Tal o seu destaque,dividindo
espaço com sua grande admiradora Sarah Vaughan, das mais consagradas
vozes jazísticas de todos os tempos.
ALGUNS
MOMENTOS COM A DIVINA
Com
frequência, eu ia ao Rio de Janeiro. Sempre convidado por Elizeth,
costumava visitá-la, inicialmente, num apartamento da rua Voluntários da
Pátria (Botafogo) e, posteriormente, na Senador Euzébio, no Flamengo,
participando das suas festas de passagem de ano. Foi, então, que pude conviver
com outros ícones da MPB, tais como o aludido Vinícius de Moraes, Toquinho,
Baden Powell, Alaíde Costa, Sérgio Bittencourt, Pery Ribeiro, Nelson do
Cavaquinho, dentre tantos que se confraternizavam naqueles festivos encontros.
Certa
vez, numa inesquecível viagem pelo trem "Vera Cruz"do Rio para Beagá
- sem dúvida o melhor transporte de que o Brasil deveria se orgulhar e, não
acabar literalmente com a nossa ferrovia, das mais portentosas do mundo -
a nossa conversa foi noite a dentro numa cabine geminada, muito confortável que
não nos deixou sentir o tempo. Foi, então, que Elizeth relatou-me toda sua
vida. Uma vida de lutas, desafios, decepções, sofrimentos, mas, coroada de
muito êxito resultante de um talento deveras inusitado, estruturado segundo os
mais credenciados conhecimentos de como utilizar a voz.
Falou-me do princípio
até aquele momento, em torno de tudo o que conseguiu como intérprete,
declinando-se de vaidades e, até mesmo, dos apostos ao seu nome.
"Meiga", "Mulata Maior" e "Divina". Sobretudo o
último, a incomodava às vezes. Dizia que nem sempre o artista está no seu
melhor momento e que, tanto ufanismo pode prejudicar muito a própria imagem. Na
sua contabilidade, o resultado acabou positivo, tendo superado o que não foi
bom, através de tantas alegrias amealhadas, falando dos prêmios, das distinções
e dos aplausos recebidos; do carinho do público, da imprensa que sempre a
destacou.
Enfim, considerando-se bastante contemplada pela graça de Deus, não acreditava
que a fama fosse fator de felicidade. Felicidade, para ela, era a música, a
família, os amigos e a prática do bem. Aliás, neste aspecto, foi sempre
generosa com as pessoas que carecessem de ajuda dela. Haja vista o que fez por
Clara Nunes, também do convívio de Marilu. Eu a conheci, ainda
operária de uma fábrica de tecidos da Renascença, quando das vindas de
Elizeth que acabou sua madrinha.
Sem dúvida "divina", seu repertório, expressado em antológicas
gravações, quase todas pela Copacabana-Rio. Moacyr Silva, exímio saxofonista-
também conhecido por Bob Fleming - assim como o Zimbo Trio ou o
violonista Rafael Rabelo, dentre tantos, muito contribuíram com
acompanhamentos, emoldurando toda beleza da sua voz.
Elizeth, as vezes em
que chegou até a hospedar comigo e minha saudosa esposa Zélia, costumava rir
muito contando uma viagem que empreendeu com Ademilde Fonseca (exclusiva
intérprete de Waldir Azevedo em "Brasileirinho" e" Pedacinhos do
Céu"). Refiro-me à festa para qual foram convidadas no palácio de Jacques
Fath, nos arredores de Paris. Simplesmente elas se perderam nas dependências do
lugar e quase não puderam atuar. Encontraram gente muito estranha, de
elevadíssima sofisticação, perambulando por lá. Sem saber falar o
francês, as duas tentaram se virar como puderam. Mas, quando conseguiram
mostrar o seu potencial cantando nossa música, foram aplaudidíssimas por ícones
como Jean Sablon, Catherine Deneuve, Sophia Loren e o nosso Ivon Cury, ali
destacado pelo anfitrião que também se emocionou ouvindo-as.
No Japão, sua turnê foi marcada de tanto sucesso que teve de voltar. De Tóquio,
trouxe-me um lindo presente que guardo com carinho: uma estátua de Buda.
A estátua possuía em seu interior um apêndice pontiagudo de cerâmica, em cujo
com leve toque do dedo indicador, a vibrava, reproduzindo leve sonoridade de
cordas, como que reprodutor do gesto que a estátua possui, ou seja, Buda ao
tocar um instrumento de cordas. Infelizmente esta peça interna foi quebrada, "silenciando-o"
para todo o sempre... Em 2016 durante visita a uma loja de artigos japoneses em
São Paulo, meu filho e neta buscaram uma nova peça, mas infelizmente não
lograram êxito...
Devo dizer que a
minha aproximação com ela, nada se deve ao meu trabalho jornalístico. Pura
empatia! Vinha aqui e logo nos encontrávamos, acompanhando-a nos shows. Zélia,
muito solidária, oferecia aquele apoio que as mulheres sabem como fazer.
Elizeth, como se pode ver nestas fotos, dentro do meu apartamento, uma pessoa
comum, despojada de toda vaidade. Para se apresentar (como mostra a
foto), super produzida, belíssima figura, capaz de magnetizar toda e qualquer
platéia.
Certa vez, na Casa do
Baile (Pampulha), ali estivemos com ela. Deu um espetáculo inesquecível,
presente JK que gostava muito de dançar. Ao final, sem um camarim, fomos para
os fundos do prédio, bem próximos da lagoa. Juscelino, entusiasmado, depois de
"umas e outras", chegou tão eufórico que quase rolou ribanceira
abaixo, não fosse eu segurá-lo pelo braço. Elizeth, aflita, apelava pr'a mim: "Zecarlo (como me chamava) não deixa o presidente cair dentro
d'água." Ali ficamos completamente esquecidos pela produção do
show e acabamos numa carona de um amigo meu, no mais alto grau etílico!!! Uma
epopeia, tragicômica...
Em meados de 1968,
retornava a Belo Horizonte e, permanecendo horas e horas em companhia da minha
mencionada e saudosa esposa Zélia, todas as noites nós a conduzíamos ao Teatro
Clara Nunes (na Imprensa Oficial), em sua última grande temporada nesta cidade,
ao lado do Zimbo Trio. Minha mulher, grávida do único filho José Emílio,
despertou na notável amiga aquele sentimento maternal, dizendo que aguardava
pela vinda da criança que não sabíamos qual o sexo. Ela dizia, por simples
diagnóstico que seria homem. Antes de retornar ao Rio, saiu muito cedo,
retornando com presentes à esperada criança. Ela dizia, em contraponto com os
médicos que nasceria em novembro. E não errou! Com espírito prático, vendo-nos
muito inexperientes, comprou, além de roupinhas, um livro do dr.Delamare, ícone
da pediatria no Brasil, pelo qual ensina como se cuidar de recém-nascidos. Como
foi útil!
Nos anos 70, quando viajávamos ao Rio de Janeiro também para acompanhar as
temporadas líricas de minha irmã, nós a visitávamos em seu luxuoso apartamento
no Flamengo. Meu filho, ainda muito pequeno e aprendendo as palavras ( ainda
felizmente fora da pedagogia criminosa e abjeta de Paulo Freire...) pronunciava
o que lhe vinha à mente e de repente atribuiu um adjetivo jocoso à nossa
querida Elizeth, pelo que, de pronto, intervi energicamente... Reconhecido o
fato de que uma criança de 4 anos não possui discernimento formado, ela
carinhosamente me repreendeu dizendo que não o fizesse - trouxe meu filho em
torno de seus braços e lhe ofereceu um salgadinho que surgia naquela época: o
"cheetos" de queijo, que muito apreciou... enquanto se desculpava
também por ter-lhe derrubado um biombo " sem querer" - aquele sem querer de um menino que não para quieto...
As traquinagens dele, entretanto, não pararam ali... Antes de retornarmos para
BH resolvi comprar para ela um terço de contas de jacarandá, idêntico ao que
tínhamos em nosso quarto. Uma peça magnífica. Com dificuldade fiz um embrulho
de luxo e logo em seguida ele simplesmente o rasgou, entendendo ser um
presente, sem perguntar-me... Desta vez, entretanto, o "canto da
palmada" entoou mais alto do que a voz carinhosa da Divina..., afinal de
contas, para que serve um pai se não educa seu filho? Felizmente naqueles dias
livres, seguros e solares dos anos 70, o câncer do "politicamente
correto" jazia nos esgotos com seus criadores e de onde jamais deveriam
ter saído, diga-se...
Tantos foram os
momentos que se torna impraticável mencioná-los nestas páginas.Haverá,
seguramente, um livro, no qual falarei das minhas "façanhas" de que
tanto me orgulho.
A
razão de se gravar "Chão de Estrelas", (considerada " Sílvio
Caldas de saias"), Elizeth foi chamada a dar um apoio ao autor da letra
Orestes Barbosa, que atravessava difíceis momentos. Com total predisposição,destinando
tudo o que pudesse amealhar com a mais aclamada das suas gravações,juntamente
com o referido intérprete e compositor da antológica música, acabou se
consagrando. A partir de então, sua carreira que assumia proporções
admiráveis, alçou impressionante vôo no Brasil e no mundo. Ela comentava o
fato, dizendo-se absolutamente premiada por haver podido dar a mão ao genial
poeta.
Em minha residência, em Belo
Horizonte, MG, no ano de 1976 recebi Elizeth e sua inseparável apoiadora
Lourdes, conforme podemos observar, da esquerda, acima, para a direita, abaixo:
No sofá: meu pai, o maestro Francisco Buzelin; Elizeth;
minha sobrinha Marília; eu; Lourdes; e
minha falecida esposa, Zélia.
Em nossa varanda, eu e Elizeth;
Ainda havia um belo horizonte, hoje
tomado por prédios infindáveis...
Elizeth, minha esposa Zélia com minha sobrinha, Marília e José Emílio; ladeado pelo
meu pai, Francisco Buzelin;
Zélia; Elizeth; eu e Lourdes, em foto para a posteridade, pouco antes da
apresentação na Casa do Baile, conforme cito.
https://www.youtube.com/watch?v=eqh4ZEtuDp0